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“Brincar é o instrumento de ser. A criança é o próprio brincar”

Coordenadora do programa Território do Brincar, do Instituto Alana, Renata Meirelles fala sobre a importância da brincadeira na infância.

Por Raquel Drehmer
Atualizado em 24 Maio 2018, 20h44 - Publicado em 24 Maio 2018, 20h22

Há 22 anos, parte da vida da documentarista Renata Meirelles é voltada para o intercâmbio de brinquedos e brincadeiras de crianças de todo o Brasil. Pouco depois de entrar nesse universo, em 2000 ela conheceu David Reeks e juntos eles criaram o Projeto BIRA (Brincadeiras Infantis da Região Amazônica). No ano seguinte, foram para a Amazônia e visitaram 16 comunidades indígenas e ribeirinhas no Amapá, Pará, Amazonas, Roraima e Acre.

Dessa imersão nasceram filmes de curta-metragem, o livro Giramundo (vencedor do Prêmio Jabuti) e muitas apresentações, palestras e oficinas no Brasil e no exterior.

Muitos projetos e pesquisas sobre a infância depois – entre eles, o Projeto Mapa do Brincar, a exposição Trilha do Brincar e o filme Disque Quilombola, parcerias com a jornalista Gabriela Romeu – entre abril de 2012 e dezembro de 2013, Renata e David percorreram o Brasil com seus filhos para conhecer o país pelos olhos das crianças. Estiveram em comunidades rurais, indígenas, quilombolas, em grandes centros urbanos, no sertão, na praia e registraram as sutilezas da espontaneidade do brincar, que nos permite saber como a criança é a partir dela própria.

Trata-se de um trabalho de escuta, intercâmbio e difusão da cultura infantil, registrado em filmes, fotos, textos e áudios. Uma dedicação que se ampliou com a parceria firmada com o Instituto Alana, correalizador do programa Território do Brincar. Seus resultados, por enquanto, são um filme de longa-metragem, dois livros, duas séries infantis para a TV, filmes de curta-metragem, artigos e uma exposição itinerante.

Clique aqui para assistir ao filme Território do Brincar (90 minutos)

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Clique aqui para assistir ao curta-metragem Terreiros do Brincar (52 minutos)

Como estamos na Semana Mundial do Brincar, conversamos com Renata sobre o panorama atual do brincar infantil, as características das brincadeiras de crianças de Norte a Sul do Brasil e a importância de manter essa chama acesa entre os pequenos.

Renata Meirelles, coordenadora do programa Território do Brincar (Instituto Alana/Divulgação)

Historicamente, o brincar infantil já passou por altos e baixos. Lá atrás, houve um tempo em que as crianças eram consideradas “adultos em miniatura”, depois passaram a ser vistas como crianças de fato. Há pouco mais de uma década, as crianças foram sobrecarregadas com atividades curriculares e o brincar foi deixado de lado. Hoje, parece haver uma revalorização do brincar nas pequenas e nas grandes cidades. Há mesmo esse movimento?

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Renata Meirelles (R.M): Eu percebo um olhar e iniciativas de instituições que têm ampliado o que é o brincar, mas o brincar, pela minha percepção, ainda é muito desconhecido. Nas grandes cidades, o brincar ainda é um meio para chegar a um fim, um instrumento pedagógico para atingir metas.

Como nação, estamos longe de chegar ao brincar como um fim em si mesmo. Há uma dominação, uma manipulação dos recursos. Estabelecendo um paralelo com os recursos naturais, é como se a gente fizesse com a infância o que se faz com os rios: tira do seu curso e represa para chegar ao resultado desejado.

Há, ainda, um fluxo natural do brincar em algum lugar?

(R.M): O fluxo natural da infância é para poucos. Mas, quando é permitido, é riquíssimo e possível. O que observamos no nosso trabalho é que em pequenas comunidades o brincar é mais valorizado.

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Ao longo de seu trabalho com o Território do Brincar, o que foi mais marcante na observação das brincadeiras infantis?

(R.M): O mais marcante é o que é recorrente, o que se repete de Norte a Sul do Brasil, aquilo que mais une as crianças do que as separa.

No brincar, a criança expressa um lado guerreiro e heroico. Brincar com armas é unanimidade em todos os lugares, seja com pedaços de pau, de bambu, armas compradas em lojas ou elásticos nos dedos. O produto tem diversidade, mas a intenção se repete. Em uma comunidade violenta isso poderia ser visto como uma espécie de cura, mas no meio da floresta as crianças também usufruem disso.

O que o brincar mais natural, das pequenas comunidades, tem a ensinar ao brincar dos grandes centros urbanos?

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(R.M): Nas comunidades mais tradicionais fica evidente a autonomia das crianças, pois não há a supervisão de um adulto o tempo todo. Elas têm um quintal à sua disposição e esse quintal pode até ser uma floresta. Então esse brincar tem a força do espontâneo, o expressar de um desejo individual a ensinar.

Em cena de Território do Brincar, menino brinca com pião em uma pequena comunidade (Instituto Alana/Divulgação)

E esse brincar tem algo a aprender com o brincar das grandes cidades?

(R.M): Sim, sem dúvida. A infância urbana tem uma autocrítica e relações imaginárias muito potentes. As crianças urbanas têm uma verborragia mais acentuada. Quando brincam, discutem e falam sobre o objeto brincar. Isso pode ensinar a, nos meios rurais, dar força para que as crianças marquem o que estão fazendo ao brincar.

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Uma das grandes discussões do momento é a liberdade de as crianças brincarem do que quiserem, independentemente do gênero. Meninos brincarem de boneca, meninas brincarem de carrinho, por exemplo. Essa discussão se nota fora das redes sociais, no dia a dia Brasil afora?

(R.M): A gente tem que deixar muito claro o que é a perspectiva do adulto e a da criança. O Território do Brincar observa a criança em sua natureza, sem interferir. O que notamos é que há, sim, uma intenção mais forte e natural do que se diz “brincadeira de menino” e “brincadeira de menina”. São pipas e carrinhos em turmas de meninos, amarelinha e elástico em turmas de meninas. Tem um lugar do brincar que é cultural e influenciado, mas também tem um lugar que é a natureza da criança. O lugar saudável é a escolha da criança, não a natureza do julgamento do adulto.

Por fim, qual é, para você e pela sua experiência de tantos anos, a importância do brincar para as crianças?

(R.M): É impossível dissociar crianças e brincadeiras. Brincar é o instrumento de ser. A criança é o próprio brincar. A gente tende a relações de engavetamento, de classificações, mas o brincar é o diálogo do interno com o externo e vice-versa. Não vejo a brincadeira com a perspectiva do desenvolvimento futuro. O brincar se concretiza em cada etapa da vida da criança, com um nível de consciência sempre diferente. O brincar permite que a criança seja ela própria.

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